Da serie namorados:

Texto otimo!!!

Namorar é um ato apócrifo

MADSON MORAES: "Quem não tem namorado não liga se vai abrir licitação na vida alheia para, depois, ter de prestar contas".


· 

 


Namorar é um ato apócrifo / Foto: Think Stock

Por MADSON MORAES

Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo, disse Carlos Drummond de Andrade na sensacional crônica "Quem não tem namorado". O texto é compartilhado em blogs, redes sociais e não duvido que já tenha sido declamado nos muitos saraus que por aí se precipitam. Há ainda o áureo texto "Não te amo mais", da escritora Clarice Lispector, onde ao se ler de baixo para cima é um texto de um "fora" e lendo ao contrário é uma declaração de amor. Tudo seria perfeito para a data de namorados se estes textos fossem, de fato, dos celebrados autores.

O primeiro não é de Drummond, mas sim de Artur da Távola, jornalista e escritor brasileiro da mesma competência verbal que o poeta mineiro de Itabira. O segundo texto não é da pena de Clarice e o autor ainda é desconhecido. Isso sem contar que Manuel Bandeira, Luís Fernando Veríssimo, Charles Chaplin, entre inúmeros outros autores, têm textos apócrifos circulando de cliques em cliques nos eternos virais e correntes da web. Há um livro bem divertido sobre isso: "Caiu na rede" é da caneta da jornalista e escritora Cora Rónai, que desvenda e esclarece a maioria dos verdadeiros autores de alguns desses textos que rondam o universo virtual. Quis citar estes exemplos apenas para provar algo de que sempre suspeitei no mundo real: namorar é um ato apócrifo.

O namoro segue exatamente o mesmo padrão: o de não seguir constituição alguma. E é exatamente isso que o namoro precisa ser: herege, ignorado, sem autenticidade ratificada, sem selo tarimbado por órgãos oficiais. Quem não tem namorado não liga se vai abrir licitação na vida alheia para, depois, ter de prestar contas. O namoro vive de CPIs, de apresentação de relatórios verbais e morais, de códigos de éticas montados à revelia dos futuros pedidos de desculpas, eu te perdoo, te quero, eu te amo tanto, gatinha. Namoro bom mesmo é namorar dentro da clandestinidade do sentimento que nós nem sabemos ainda qual a intensidade ao certo.

Paquera, namorinho de portão, bala de goma, roda de violão, o primeiro pique-esconde, cinema a dois, fliperama até tarde, guarda-chuva quebrado, o sorvete na esquina, a mão boba na praça, a fingida roda de estudos, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro copo, o primeiro corpo, o início do amor, os sonetos de Camões, a mesada curta, o medo do pai, do irmão dela lutador de capoeira, a primeira finta no trabalho para vê-la, o final de semana esquecido nela, a primeira praia, a primeira cama, a primeira maca deitado bêbado ao lado dela.

Namorar é apócrifo porque o amor é suspeito, duvidoso, acusado de imediato, só trabalha com o recurso do Habeas-corpus. Os romances não dão certos porque crescemos e as pernas ficam compridas e o amor, preguiçoso como Zé Carioca, demorar a percorrer as rotas de felicidade escondidas. Ou, como diz o próprio Távola em seu texto atribuídos aos outros, namorar é fazer pactos com a felicidade ainda que rápida, escondida, fugida ou impossível de durar. Ou naquela felicidade de Vinicius que só é infinita porque dura enquanto pode durar. Ou com Chico Buarque alertando que nada é para já, que não precisa de afobação, afinal, um bom namorado sabe que esperar é a coisa que mais irá fazer.

Namoro é culto secreto, é rito quase maçônico, é esta dedicação silenciosa que, se for o caso, grita para reclamar atenção. O namoro, meninos e meninas, é essa propaganda política no coração alheio, é passar por cima do Legislativo e suas regras e executar os sentimentos por decreto, se for o caso, para o afortunamento da relação. Namoro não vem com assistência técnica, nem manual, nem símbolos padronizados, nem com signos e tampouco existe semiótica que decifre os signos "namorosos".

Mas ok, pouco importa se daqui a 10, 15, talvez 50 anos este texto seja atribuído a Madson de Andrade, Artur Drummond, a Carlos Clarice ou ainda a Mário Távola Moraes. Que nos roubem descaradamente os verbos de namoro, furtem os títulos, que pichem frases de namorados nas paredes secas das metrópoles secas. O namoro é, talvez, a única mentira que satisfaça nosso apócrifo coração no silêncio de depois.

* Madson Moraes, 26 anos, é colunista e repórter do Tempo de Mulher. Já escreveu críticas de cinema para a Revista Zingu e passou por revista e redação online. Também é comentarista da Rádio SPFC Digital. Metido a poeta, escreve no blog madsonmoraes.tumblr.com (@madson_moraes)


Comentários

Postagens mais visitadas